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sexta-feira, 4 de novembro de 2011
TRATAMENTO DE CHOQUE
Uma garrafa de Uísque, algumas outras garrafas de cerveja, um churrasco, uma festa, um carro, uma estrada, um despenhadeiro, uma mulher, uma criança e um homem auto-suficiente, viu toda a sua auto-confiança morrer juntamente com a sua família. Sua última lembrança daquela tenebrosa noite, eram as luzes das ambulâncias que ofuscavam seus olhos ressaquiados e o sangue que escorria pelos rostos de seu filho e esposa. O instinto paterno tentou fazê-lo levantar do chão e correr em direção à sua família afim de resgatá-los, mas suas pernas estavam bastante fraturadas e sequer conseguiu levantar-se do chão. A voz estava fraca, o grito não saía, e novamente suas vistas escureceram e adormeceu, no mais intenso e vazio coma. Só conseguiu acordar três meses depois, sequer teve a oportunidade de sepultar sua família. Ao lado de sua cama estava sua velha mãe que aos prantos o recebeu como se estivesse recebendo uma criança que acabara de nascer.
- Nicolas... Nicolas – insistia sua mãe – Nicolas! Está acordado filho?
- Estou sim mãe. Como estão o Carlinhos e a Estela?
- Filho, se recupere antes. Você ainda não está pronto para saber de certas coisas.
- Diga logo mãe, o que aconteceu?
- Ta bem, eu vou contar. Naquela noite eles não resistiram à queda e morreram.
Nicolas esperava uma lágrima despertar o lado sensível de sua alma, mas naquele momento, parecia que sua alma havia partido de seu corpo. A única coisa que lhe restava eram perguntas e a que mais o torturava era o “porquê”.
- Matei o meu filho e minha esposa – pensou- e sequer tive o direito de sepultá-los. Por que bebi mesmo sabendo que os conduziria naquele veículo? Por que não entreguei as chaves nas mãos de outras pessoas? Por que Estela não me impediu? Por que não recebi um sinal? Por que? Por que? Por que?
Eram tantos “porquês” que inevitavelmente sua mãe escutou e com os olhos lacrimejando deu de ombros evitando bombardeá-lo de acusações naquele momento tão triste.
- Vou chamar o médico – disse sua mãe.
O doutor o examinou, e o dispensou, mas com um encaminhamento a um psiquiatra.
- Não preciso de um psiquiatra – murmurou – preciso da morte. Por que Deus não me deixou morrer?
- Não diga besteiras filho! Vamos tentar seguir adiante.
- Você só pode estar brincando, como posso seguir se em meus ombros carrego o peso da morte da minha própria família?
- A culpa não foi toda sua, filho. Com o tempo você descobrirá todos os detalhes.
- O que você quer dizer com isso?
- Com o tempo você saberá de tudo.
Eles foram para a casa de sua mãe, pois Nicolas evitava voltar à sua antiga residência. A coragem de olhar as pessoas nos olhos morreram juntamente com sua mulher e filho.
- E quanto aos meus sogros? Perguntou. Eles não querem nem olhar na minha cara né?
- Eles te perdoaram, fique tranquilo!
- Mas... Como?
- Eles te perdoaram. Agora vê se descansa e pare de fazer perguntas. O que tinha que acontecer já aconteceu, nada mais mudará o passado.
- Eu dormi por três meses e você ainda quer que eu durma ainda mais?
- Não é isso, eu quero que descanse sua mente de especulações e intermináveis perguntas. Eu já disse que com o tempo você descobrirá todas as respostas que necessita.
Uma súbita coragem invadiu o coração daquele homem e então decidiu voltar à sua antiga casa e a encontrou da mesma forma que haviam deixado antes do acidente. Tudo estava em seu devido lugar. O controle da TV ainda estava sobre o sofá, a camiseta que desistira de sair ainda estava sobre a cama, e o porta-retratos ainda se encontrava na cabeceira de sua cama, estampando os sorrisos de seu pequeno filho e sua bela esposa. Nicolas como sempre estava sério, calado e misterioso. Pediu com que sua mãe o deixasse sozinho, pois precisava pensar e assim ela o fez. O grito do silencio atormentava sua mente transtornada pela culpa e pelo ódio de tudo, inclusive de si mesmo. Então ele tomou uma terrível decisão, decidiu se matar. Mas Nicolas já havia sofrido o bastante, não queria morrer sentindo dor. Ele correu para o modesto bar que se encontrava próximo à sala de visitas e percebeu que já não mais haviam garrafas de bebidas.
- Também pudera – pensou – é claro que a minha mãe jamais deixaria bebida alcoólica ao meu alcance. Mas uma coisa ela não sabe, eu tenho conta em todos os bares da região.
Ele correu em direção ao bar de um amigo que o recebeu com bastante pesar. Quando o pediu uma dose de Uísque, seu amigo recusou imediatamente.
- Não me leve a mal Nicos – disse intimamente seu amigo - mas eu teria vergonha de beber depois do que aconteceu. Eu não posso e não quero lhe servir bebidas.
Nicolas mal o esperou terminar o discurso e partiu envergonhado.
- Como pode depois de tudo o que aconteceu, eu ainda sentir vontade de beber? Meu Deus, como eu sou idiota!
Ao aproximar-se de sua casa, deprimido, constrangido e contaminado pelo ódio, Nicolas correu em direção ao seu quarto, pegou um lençol, armou um laço e tentou se enforcar, mas não teve coragem, aquilo poderia ser bastante doloroso. Então decidiu sair de casa e andar sem rumo. Naquele momento ele passou a valorizar cada detalhe da vida. Sempre que via uma criança e uma bela mulher, lembrava-se de sua esposa e filho, tentando encontrá-los em cada olhar como se pudesse ressuscitá-los. E nessa andança, ele se distraiu de tal forma que ao atravessar a avenida só conseguiu ouvir uma forte buzina e o assustador barulho de pneu derrapando. O impacto foi tão forte que as testemunhas relataram que há quase cinqüenta metros podia-se ouvir o barulho de seus ossos quebrando. Uma carreta que transitava em alta velocidade o atingiu provocando-lhe morte instantânea. Ao receber a notícia, sua mãe correu até o local do atropelamento e gritou desesperadamente pela a perda do filho. Ao contrário de Nicolas, sua mãe chorou rios de lágrimas que misturavam com o sangue que manchavam o asfalto. O motorista da carreta estava atônito, caminhava de lado para o outro sem saber o que fazer. Até que ao longe se ouvia gritos desesperados de alguma mulher que aos berros perguntava por que cometera tamanha idiotice. Era Estela, sua esposa, que estava desconsolada com a morte do marido.
- A culpa foi toda sua – disse aos prantos para sua sogra – Ninguém se recupera de um vício com um método tão absurdo!
A mãe de Nicolas não tinha forças para dizer palavra alguma. Ela só conseguia olhar para o rosto de seu filho, desfigurado e ensangüentado. A ambulância o removeu daquele local e o levou diretamente ao necrotério.
No dia seguinte, sua mãe, esposa, filho, o amigo do bar e as demais pessoas que sabiam de todo aquele plano absurdo, sepultaram-no. Mas a culpa os assola até os dias de hoje fazendo-o ressuscitar em cada olhar, em cada sorriso e em cada acidente. Em sua casa, antes de sair para a caminhada que resultaria em sua morte, Nicolas deixou escrito em um pedaço de papel que estava debaixo do porta-retratos.
“ Deus, me perdoe por matar minha família. Me perdoe por ter sido tão imprudente! Eles não tinham culpa, mas ainda assim meu egoísmo por tentar guiá-los da minha maneira, resultou nessa grande desgraça. Sou um homem morto, pois mesmo estando vivo, sinto minha alma perecer no inferno existencial. Nunca mais eu quero ver na minha frente uma garrafa de bebida, nunca mais vou dirigir, mas por outro lado nunca mais verei minha família. Mude a consciência de todas as pessoas que tomam decisões precipitadas. Mude a consciência dos que agem sem consultar aqueles que o ama. Transforme todo egoísmo em sabedoria, todo vício em virtude, e toda a solidão em uma bela família, pois eu morri juntamente com a minha. Talvez esta seja a última vez que piso nessa terra, mas deixo aqui toda a minha gratidão pela a minha mãe e toda a minha saudade pela minha amada Estela e meu filho Carlinhos. Apesar de tudo, obrigado por pelo menos esses que ainda me amam estarem vivos.”
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